Quando a ignorância se veste de opinião: Reflexões sobre os 58% que “envergonham” o STF
Confesso que me sinto profundamente envergonhado – não do Supremo Tribunal Federal, mas sim desses 58% de brasileiros que, segundo pesquisa Datafolha, afirmam ter “vergonha” de nossa mais alta corte judicial. O que deveria me causar espanto, na verdade, apenas confirma uma triste realidade que há tempos observo: vivemos em um país onde a ignorância cívica se travestiu de opinião política legítima.
Não é coincidência que esses números se alinhem perfeitamente com nossos devastadores índices educacionais. Enquanto 29% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais – ou seja, não conseguem sequer compreender textos simples -, temos a audácia de nos surpreender quando essa mesma população emite “opiniões” sobre a complexidade do sistema judiciário? A matemática é cruel, mas precisa: uma sociedade onde apenas 18,4% da população possui ensino superior simplesmente não tem o aparato intelectual para compreender as nuances da separação de poderes.
O mais revelador é que entre apoiadores de Bolsonaro, 82% dizem ter vergonha do STF, enquanto entre eleitores de Lula, esse número cai para 36%. Coincidência? Absolutamente não. É a demonstração cristalina de como o negacionismo histórico – que transforma ditadores em heróis e torturas em “probleminhas” – corrói a capacidade de discernimento de uma população já educacionalmente fragilizada.
Como não ver a conexão entre o fato de que apenas 73,3% dos jovens brasileiros concluem o ensino médio e essa capacidade limitada de compreender instituições democráticas? Quando 47% dos brasileiros consideram a educação do país ruim, estamos observando as consequências práticas dessa deficiência: cidadãos incapazes de distinguir entre independência judicial e submissão política.
A ironia é amarga: os mesmos que clamam por “justiça” são aqueles que não compreendem o que significa um Poder Judiciário independente. Querem decisões que atendam seus caprichos ideológicos, não julgamentos baseados na Constituição. Como bem observou um comentarista perspicaz: “Os que afirmam ter vergonha do STF são os mesmos que querem decisões como se fosse um delivery de pizza, que atendam aos seus gostos pessoais”.
O que presenciamos é o resultado de décadas de investimento em desinformação sistemática. Populações com baixa escolaridade são presas fáceis para narrativas simplistas que transformam complexidades jurídicas em teorias conspiratórias. Quando 66% dos evangélicos declaram vergonha dos magistrados, não estamos vendo fé genuína, mas sim o fruto de uma instrumentalização política que explora a religiosidade para fins autoritários.
É sintomático que essa rejeição ao STF cresça exatamente no período em que a Corte atua contra tentativas golpistas e defende a democracia. Para mentes despreparadas para compreender a diferença entre imparcialidade e parcialidade política, qualquer decisão que contrarie seus preconceitos é vista como “ativismo judicial”.
Enquanto países desenvolvidos investem em educação de qualidade, nós colhemos os frutos de gerações de abandono educacional. O resultado está aí: uma população que confunde independência judicial com submissão política, que vê na defesa da democracia uma ameaça a seus valores distorcidos.
Não posso deixar de sentir uma mistura de tristeza e indignação quando vejo essas estatísticas. Tristeza por uma nação que poderia ser muito mais, mas que se contenta com a mediocridade intelectual. Indignação por ver como a manipulação autoritária encontra terreno fértil em mentes despreparadas para o exercício da cidadania plena.
A realidade é que esses 58% não têm vergonha do STF por razões jurídicas ou constitucionais legítimas. Têm vergonha porque não compreendem o papel da instituição em uma democracia. São vítimas de sua própria limitação educacional e presas fáceis de narrativas populistas que exploram essa vulnerabilidade.
É uma tragédia nacional que, em pleno século XXI, ainda tenhamos que explicar por que juízes não devem ser popularmente simpáticos, mas sim constitucionalmente corretos. Que tenhamos que justificar por que a independência judicial é uma conquista democrática, não uma afronta à vontade popular.
Enquanto não encararmos essa realidade – que uma população educacionalmente deficiente é incapaz de compreender e valorizar suas próprias instituições democráticas -, continuaremos a ser reféns da ignorância militante que confunde opinião com conhecimento, emoção com razão, e preconceito com discernimento.
A vergonha, caros leitores, deveria ser nossa – por termos permitido que chegássemos a este ponto.