Violência e censura atingem 9 em cada 10 professores no Brasil, mostra estudo da UFF

Relatório aponta perseguição política, autocensura e sensação de vigilância em escolas e universidades públicas e privadas de todo o país

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Luciano Meira

Nove em cada dez educadores da educação básica e superior, de redes públicas e privadas, já foram vítimas diretas ou presenciaram casos de perseguição e censura no exercício da profissão, segundo pesquisa nacional coordenada pelo Observatório Nacional da Violência Contra Educadoras/es (ONVE), da Universidade Federal Fluminense (UFF), em parceria com o Ministério da Educação (MEC). O estudo indica que a violência atinge a liberdade de ensinar e de aprender e está disseminada em todas as regiões brasileiras.

O que diz a pesquisa

O levantamento ouviu 3.012 profissionais de educação básica e superior de instituições públicas e privadas em todo o país. O foco foi mapear violências ligadas à limitação da liberdade de ensinar, tentativas de censura e perseguição política, incluindo a possibilidade de registro de violência física, embora esse não fosse o eixo central do relatório
Na educação básica, 61% dos docentes relataram ter sido vítimas diretas de violência, proporção que chega a 55% no ensino superior, patamar considerado alto pelos pesquisadores. Ao todo, 93% dos educadores afirmaram ter tido algum contato com situações de censura desde 2010, seja por experiência direta, por relatos de colegas ou por conhecimento indireto.

Formas de censura e violência

Entre os educadores diretamente censurados, 58% disseram ter sofrido tentativas de intimidação, 41% relataram questionamentos agressivos sobre métodos de trabalho e 35% enfrentaram proibições explícitas de abordar determinados conteúdos em sala de aula. Também foram mencionados episódios de agressões verbais (25%), agressões físicas (10%), demissões (6%), suspensões (2%) e mudanças forçadas de local de trabalho ou função, que somam mais de 20% dos casos.

Os relatos incluem situações em que materiais oficiais sobre vacinação e medidas sanitárias foram barrados sob acusação de “doutrinação”, além de proibições de tratar de violência sexual, gênero, sexualidade e teoria da evolução em aulas de ciências. Segundo o coordenador da pesquisa, professor Fernando Penna, esses exemplos mostram como temas considerados obrigatórios pelas diretrizes educacionais se tornaram alvo de disputas políticas e morais.

Temas mais contestados

De acordo com o estudo, os temas que mais motivaram questionamentos à prática docente foram assuntos políticos (73%), seguidos por gênero e sexualidade (53%), religião (48%) e questões ligadas ao negacionismo científico, como vacinas e evolução (41%). A análise do ONVE indica que a violência e a censura se enraizaram tanto na educação básica quanto na superior, afetando diretamente o conteúdo trabalhado em sala.

Os pesquisadores apontam que estudantes têm deixado de discutir temas considerados vitais para a formação cidadã, como direitos humanos, diversidade e ciência contemporânea. Para Penna, esse cenário atinge não apenas os docentes, mas o direito dos alunos a uma formação ampla e baseada em conhecimento científico e pluralidade de ideias.

Polarização e contexto político

A pesquisa também buscou identificar em que anos os episódios de violência ocorreram, com a hipótese de relação com a polarização política recente. Os dados mostram crescimento dos casos a partir de 2010, com picos em 2016, 2018 e 2022, anos marcados por impeachment e eleições presidenciais, em que o debate público esteve mais acirrado.

Os autores falam em “polarização assimétrica”, com forte presença de grupos de extrema direita confrontando principalmente uma centro-esquerda, e destacam que essa tensão política “entrou nas escolas” e universidades. Organizações da área da educação relacionam o ambiente de hostilidade também a campanhas contra professores e a projetos como o Escola sem Partido, que estimularam denúncias e vigilância sobre a atuação docente.

Quem são os agressores

Quando perguntados sobre os agentes da violência, os educadores citaram majoritariamente membros da própria comunidade escolar ou acadêmica. Direção, coordenação pedagógica, familiares de estudantes, alunos, docentes e funcionários administrativos aparecem entre os principais responsáveis pelos atos de censura e perseguição.

O estudo conclui que, embora discursos de figuras públicas e lideranças políticas tenham contribuído para o clima de hostilidade, a violência já se incorporou ao cotidiano das escolas e universidades. O ONVE aponta que profissionais de áreas que lidam com produção de conhecimento – como professores e jornalistas – têm se tornado alvos recorrentes de ataques em contextos de desinformação e teorias conspiratórias.

Impactos na carreira e na sala de aula

A perseguição foi descrita como extremamente impactante por 33% dos educadores, tanto na vida profissional quanto pessoal, e como bastante impactante por 39%. Em muitos casos, os episódios resultaram em abandono da carreira docente, em um movimento que o estudo associa ao “apagão” de professores em determinadas redes e áreas.

Além disso, cerca de 45% dos entrevistados afirmaram sentir-se constantemente vigiados, o que leva à autocensura sobre o que é tratado em sala de aula. Em escolas privadas, há relatos de docentes que evitam determinados assuntos por medo de perder o emprego, enquanto, em redes públicas, o temor envolve retaliações administrativas e políticas.

Regiões mais afetadas

O impacto da violência foi percebido em todas as regiões do país, mas com maior incidência de relatos diretos no Sudeste e no Sul. Em estados como Santa Catarina, a pesquisa registrou número elevado de respondentes e de casos relacionados à atuação de grupos de extrema direita e a disputas políticas locais.

No conjunto nacional, 93% dos educadores disseram ter tido contato com situações de censura, sendo 59% vítimas diretas, 19% conhecedores de casos ocorridos com colegas e 15% informados por terceiros. Para os pesquisadores, o dado reforça que se trata de um fenômeno sistêmico, e não de episódios isolados.

Medidas de proteção e próximos passos

O ONVE defende a criação de uma política nacional de enfrentamento à violência contra educadores, proposta que já vem sendo discutida no âmbito do MEC. O plano inclui a elaboração de protocolos de acolhimento jurídico e psicológico, além de campanhas públicas e ações de formação em direitos humanos para redes de ensino.

O observatório mantém acordo de cooperação com o Ministério dos Direitos Humanos e prepara novos relatórios a partir do banco de dados coletado, bem como uma segunda etapa qualitativa com entrevistas em profundidade com professores de diferentes estados. A recomendação central é que educadores sejam formalmente reconhecidos como defensores de direitos humanos e incluídos como categoria específica em políticas de proteção.

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