Recursos de Bolsonaro e membros da Organização Criminosa são ‘apito de cachorro’ na tentativa de manter base mobilizada
Defesas apresentam alegações desconexas com a realidade fática do julgamento omitindo plano de assassinato de autoridades, atentados, desinformação e outros crimes

Luciano Meira
Sete dos oito condenados do chamado “Núcleo Crucial” da tentativa de golpe de Estado recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) nesta semana, buscando reverter sentenças que somam décadas de prisão. As peças protocoladas expõem a fragilidade dos argumentos de defesa, que evitam debater os elementos centrais da condenação e apostam em alegações periféricas, contradizendo provas e ignorando fatos graves, como o plano para assassinato de autoridades investigado e certificado pelo Supremo.
Quem são os réus, seus crimes e as penas
Todas as defesas apresentaram embargos de declaração, recurso utilizado para pleitear esclarecimentos quanto a supostas omissões ou contradições no julgamento. Veja, abaixo, o que alegou cada defesa, a condenação e a pena dos envolvidos:
Jair Bolsonaro
Crimes e pena: Foi condenado a 27 anos e três meses de prisão por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e associação criminosa.
O que alegou: Defesa diz que o julgamento foi marcado por “injustiças” e “erros”, reclama do uso da teoria da autoria mediata e critica a credibilidade da colaboração de Mauro Cid – delator fundamental do processo. Aponta ainda cerceamento de defesa e ausência de provas robustas.
Walter Braga Netto
Crimes e pena: Condenado pelos mesmos crimes de Bolsonaro, com pena semelhante.
O que alegou: Defesa insiste na suspeição do relator Alexandre de Moraes e diz que houve cerceamento de defesa pelo volume e acesso às provas. Também questiona a colaboração de Mauro Cid, alegando que o acordo de delação teria sido obtido sob coação e usando como base artigos da imprensa.
Alexandre Ramagem
Crimes e pena: Ex-diretor da Abin, condenado a 16 anos de prisão e à perda do cargo de delegado da Polícia Federal.
O que alegou: A defesa pediu redução da pena e pediu explicações porque, mesmo tendo deixado o governo em março de 2022, isso não foi considerado para abrandar sua culpabilidade. Questiona a decisão sobre a perda do cargo policial.
Anderson Torres
Crimes e pena: Ex-ministro da Justiça, condenado a pena superior a 20 anos.
O que alegou: Advogados dizem que o acórdão condenatório tem erros, omissões e contradições, contestam a tese de omissão dolosa e afirmam que foram tomadas medidas para evitar os ataques do 8 de janeiro, pedindo revisão da dosimetria e individualização da conduta.
Almir Garnier
Crimes e pena: Ex-comandante da Marinha, condenado a mais de 20 anos de prisão.
O que alegou: Defesa pede esclarecimentos se Garnier “detinha domínio funcional do fato” ou se foi equiparado de forma genérica aos demais réus, questionando a falta de distinção de condutas no julgamento.
Paulo Sérgio Nogueira
Crimes e pena: Ex-ministro da Defesa, condenado a mais de 20 anos de prisão.
O que alegou: Advogados afirmam que Nogueira teria “desistido voluntariamente” da empreitada e que sua responsabilidade deveria, por isso, ser revista — citando manifestação do ministro Flávio Dino reconhecendo tal tentativa de desistência.
Augusto Heleno
Crimes e pena: Ex-ministro do GSI, condenado a 21 anos de prisão em regime fechado.
O que alegou: Defesa pediu absolvição do general, questionando omissões e “obscuridades” no julgamento. Em caso de manutenção da condenação, solicita diminuição da pena por suposta participação de “menor importância”.
Mauro Cid
Crimes e pena: Ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, delator, condenado a 2 anos em regime aberto graças ao acordo de colaboração. Não apresentou recurso, buscando extinção da pena pela colaboração já prestada.
Julgamento e papel das defesas
Os recursos começam a ser julgados entre os dias 7 e 14 de novembro no plenário virtual do STF, sem sessões presenciais: ministros inserem eletronicamente seus votos. O relator, Alexandre de Moraes, remeteu o caso ao ministro Flávio Dino, presidente da Primeira Turma, para encaminhar o julgamento das defesas.
Os sete dos oito condenados, utilizaram o recurso disponível para acusados após acórdão condenatório: os embargos de declaração. A linha adotada pelas defesas mistura alegações de nulidades processuais — como suposta falta de análise de pedidos de suspeição do relator Alexandre de Moraes, cerceamento de defesa e excesso de documentos apresentados — a questionamentos sobre a dosimetria das penas. Reclamam ainda da unificação de crimes distintos (golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito), apontando para uma visão de que ambos descreveriam o mesmo fato, tentativa de reduzir as condenações.
No caso de Bolsonaro, advogados foram além: invocaram o “voto valioso” do ministro Luiz Fux e pediram ao STF que reconheça uma suposta “desistência voluntária”, argumento para amenizar sua responsabilidade ou anular parte das punições impostas. Dizem ainda que o então presidente teria tentado “desautorizar e desestimular” movimentos golpistas — tese já rejeitada pelo Supremo durante o julgamento.
Sentença detalha provas e planeamento de assassinatos
Contrariando a retórica das defesas, a sentença do STF detalhou a existência de uma organização criminosa dedicada à subversão democrática, com ações que vão da sabotagem da confiança nas urnas eletrônicas, os atentados em Brasília para desestabilizar a população e a articulação de um plano para assassinar autoridades eleitas — o chamado “Punhal Verde e Amarelo”. Entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023, esse núcleo atuou para manter Bolsonaro no poder por meio de pressões sobre as Forças Armadas, disseminação de notícias falsas, espionagem ilegal e planejamento explícito de execuções, evidenciado por documentos e relatos apreendidos nos autos.
O nome do plano (“Punhal Verde e Amarelo”) esteve no centro das investigações. Segundo a Polícia Federal, previa o homicídio do presidente Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes. Relatórios revelam o uso de infraestrutura oficial do governo para imprimir documentos e o emprego de táticas próprias de comandos militares, inclusive envenenamento e armas de guerra.
Recursos como ferramentas de mobilização e “apito de cachorro”
Ao ignorar sistematicamente pontos centrais da acusação e das provas já reconhecidas pelo STF, os recursos cumprem também outro papel: fornecem munição retórica à mobilização digital dos seguidores dos réus. Ao focar em supostas ilegalidades processuais e negar fatos já estabelecidos por depoimentos e perícias, abrem brecha para a proliferação de narrativas conspiratórias nas redes sociais — mecanismo já experimentado anteriormente na tentativa de pôr em dúvida a legitimidade das urnas eletrônicas e dos próprios julgamentos do Supremo.
Essa estratégia de recorrer à “burocratização da narrativa”, transformando embargos em peças de negação sem lastro concreto, é uma forma de “apito de cachorro” político: acenam a apoiadores, sugerindo a existência de injustiças ou conspirações ocultas, sem jamais enfrentar as evidências duras que sustentam a condenação. Mantém vivo, assim, o clima de contestação e expectativa de “salvação” por alguma força de fora — recurso emblemático do bolsonarismo desde 2022.
Com a análise dos embargos, espera-se apenas retardo formal dos efeitos das condenações e possível uso dos recursos como novos instrumentos de apelo público por parte de apoiadores e aliados políticos dos réus. A expectativa é que o STF mantenha as condenações e que a análise dos embargos reforce, ainda mais, a robustez do processo e o isolamento narrativo dos condenados diante das instituições.
* – “Apito de cachorro” em política é uma mensagem codificada ou sugestiva, aparentemente inofensiva ao público geral, mas que comunica um significado especial e mobilizador para determinado grupo-alvo, servindo para sinalizar ideias polêmicas sem que a maioria perceba. Assim como acontece com os cães, apesar de os humanos não ouvirem eles, e só eles, ouvem o som emitido pelo instrumento tocado pelo seu tutor/a.