Um ato de violência contra a história e a vida

Na madrugada cinzenta deste 15 de julho, a dignidade da comunidade quilombola Santa Quitéria, em Congonhas (MG), foi arrastada ao chão por oficiais de justiça que decidiram, sem piedade, impor uma ordem de despejo contra famílias cuja história confunde-se com o próprio solo que pisam. Amparados por interesses minerários, representantes do Estado e da CSN Mineração surgiram no horizonte da comunidade como mensageiros de uma sentença fria: “Têm 15 dias para abandonar suas casas.”

No centro dessa tragédia cotidiana, um casal de idosos tornou-se símbolo da brutalidade do processo. João Batista de Paula, de 74 anos, e sua companheira Maria Geralda, de 66, viram o lar de mais de nove décadas ruir em minutos com a chegada do oficial de justiça. Diante da ameaça de perder tudo o que construíram, João não suportou o peso da injustiça e precisou ser socorrido, desfalecido pelo terror de ser transformado em forasteiro em sua própria terra.

Nada – nem os rostos marcados pelo tempo, nem a memória coletiva de luta, nem mesmo o desespero explícito daquele senhor caído – foi suficiente para deter a mão impiedosa do Estado. O papel assinado, a ordem de saída, o prazo sem apelo: armas administrativas usadas para rasgar a história de um povo.

As ruas da comunidade, tomadas por moradores, ativistas e apoiadores, ecoaram gritos de resistência e também lágrimas, diante de um quadro que mais parece tirado de um passado colonial longínquo do que do Brasil contemporâneo. Vídeos compartilhados em redes sociais capturam só a violência da ação, mas não a indignação profunda com uma decisão que transforma lares em linhas de um processo judicial.

O drama do Quilombo Santa Quitéria é a evidência viva de que, para os poderosos, vidas quilombolas ainda valem menos do que promessas de lucro e minério. Justiça alguma pode ser chamada de justa se submete idosos ao medo e à enfermidade, ou se ignora a ancestralidade de um povo para atender a interesses privados.

Saídas forçadas, traumas, histórias enterradas sob tratores: cada ordem cumprida distancia-nos mais de um país comprometido com a memória, a dignidade e a vida. Hoje, mais que nunca, a resistência quilombola desafia não apenas a legalidade do mandato, mas a própria humanidade de quem o executa.

Luciano Meira

Editor do portal O Metropolitano
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